Diante dos açaizeiros, tomados de
frutos e da esperança por um meio de sobrevivência mais consistente, a alegria
do assentado Francisco Pereira dos Reis, 58, é evidente. Mas não deixa esquecer
os momentos de dificuldade enfrentados anos atrás, logo após a perda de Dorothy.
Morador de outro assentamento em Anapu, onde a missionária também atuava, o PDS
Virola Jatobá, ainda hoje Francisco tem a expressão modificada pela tristeza ao
falar na morte da missionária. Assassinada com seis tiros, em decorrência dos
conflitos pela terra que culminaram na criação do PDS Esperança, Dorothy vem à
memória do produtor naturalmente. “Eu vim na época da irmã. Foi uma perda muito
grande [a morte da missionária]. Quebrou a nossa respiração. Ficamos parados,
sem suporte”, interrompe a fala. “Ela saiu daqui na sexta-feira pra ir pro
[PDS] Esperança e na outra semana tombaram ela”.
Seu Francisco se vale da mesma
expressão usada para descrever a derrubada de muitas árvores no local –
tombadas, muitas vezes, ainda antes de parte das terras serem retomadas pelo
Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) para virar assentamento.
O assentado encerra o assunto do
assassinato tão subitamente quanto começou. Apesar de inevitável, a conversa
sobre o episódio, ocorrido há exatos dez anos, é sempre acompanhada de
apreensão. “Essa área era só capoeirão e capim. Gado ficava solto aí. Com a
retirada do gado, recuperou algumas áreas. O gado acabava com tudo ao redor”,
inicia outro assunto. “Hoje, com a assistência técnica, temos a perspectiva de
conseguir sobreviver daqui, como está acontecendo. A gente começou a
comercializar açaí no ano passado. Espero daqui a um ano ou dois anos conseguir
cinco mil quilos dentro da área de 20% [de Reserva Legal]”.
CONTROLE
Alvo não apenas de disputas pelo uso
da terra que acabam, algumas vezes, em derramamento de sangue, as questões
agrárias também possuem relação direta com o combate e o controle do
desmatamento. Passível de punições previstas no Código Florestal Brasileiro, a
repressão dos atores de desflorestamentos ilegais só é possível se os
responsáveis pela terra estiverem claramente identificados. Para o professor de
direito agrário da Universidade Federal do Pará, Girolamo Treccani, a relação é
evidente. “Qual é hoje o grande problema de coibir o desmatamento, entre outras
coisas, olhando o aspecto fundiário? É que eu não sei quem é quem. Como é que
eu posso punir alguém se eu não tenho certeza absoluta de que aquele imóvel é
desta determinada pessoa?”, questiona. “A insegurança fundiária me leva a uma
dificuldade de punir os responsáveis. Portanto, o desafio fundamental para
qualquer questão fundiária e ambiental é, primeiro, entender quantas terras
foram incorporadas no patrimônio público federal e estadual e, segundo, quantas
terras foram destinadas a particulares e o que não foi destinado para
particulares. Qual foi a sua destinação?”.
Quando se analisa a situação agrária
do Pará, o obstáculo maior está justamente aí. Dentro dos 124 milhões de
hectares do Estado, divididos em 144 municípios, é possível encontrar áreas de
responsabilidade de diversos órgãos federais e estaduais, o que dificulta o
controle mais amplo caso não haja integração entre as informações mantidas por
cada um deles. “Existe um grande número de atores públicos que têm
responsabilidades. A minha reflexão pessoal é de que, analisando a história
recente do Estado do Pará, a melhor expressão que caracteriza essa situação
fundiária é a de caos fundiário”, analisa Treccani. “Hoje, pelos meus estudos,
chego à conclusão de que nem a União, nem o Estado do Pará conhecem de maneira
sistematizada quantos títulos eles deram, que tipo de título eles deram, se
provisórios ou definitivos, para quem, qual o tamanho e aonde. Essas cinco
coisas fundamentais, nem a União, nem o Estado do Pará conhecem de maneira
sistematizada”.
Se considerados os artigos 37 a 39 da
Lei 11.977 de 7 de julho de 2009, todos os cartórios de registros de imóveis
teriam que ter seus livros digitalizados desde a entrada da lei em vigor. Isso,
porém, ainda não foi cumprido mesmo após o fim do prazo dado, de cinco anos.
Digitalizados, tais dados permitiriam que os diversos órgãos integrassem suas
informações cadastrais evitando problemas como os que, em alguns casos, já são
enfrentados no Pará. “Em 2009 o Incra criou o Projeto de Assentamento
Agroextrativista na ilha de Saracucu, lá no Marajó. Um ano depois, a Sema criou
um parque no local. Portanto, são duas realidades jurídicas absolutamente
conflitantes. Esse é um exemplo muito importante para entender a necessidade
desta integração de informações”, pondera o professor Treccani. “Uma terra
arrecadada pelo Incra em 1982 no município do Acará foi titulada pelo Iterpa em
2002. Ora, se esta é uma área pública federal, nunca o Iterpa poderia titular
naquilo que não é dele. Portanto, quando falo de caos fundiário, não é de
graça”.
(Matéria produzida pelo DIÁRIO em
colaboração com a agência ANDI Comunicação e Direitos e Climate and Land Use
Alliance (Clua))
Fonte DOL
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